O paradoxo do ensino público no estado de São Paulo
Acabo de encerrar a maratona de,
durante uma semana, aplicar a Prova Brasil em escolas públicas estaduais da
região de Limeira. Tive a ‘sorte’ de atuar junto a alunos do 5̊ ano, também
conhecido como 4ͣ série. Em cinco dias foram cinco escolas visitadas. A Prova
Brasil faz parte do SAEB, o Sistema de Avaliação da Educação Básica, vinculado ao
INEP, órgão do Ministério da Educação. Ao meu entender, o grande objetivo desse
tipo de avaliação é, através do rendimento dos alunos, avaliar o ensino público
no Brasil.
Depois de dez meses
trabalhando diretamente com a educação em São Paulo tenho tido grandes
surpresas com relação ao investimento nessa área. Mais que isso, tenho me
surpreendido com as políticas educacionais desenvolvidas, sobretudo porque
tenho encontrado gestão na educação
de nosso estado. Objetivos, metas, trabalho e resultados. Está longe de ser
perfeito, mas o trabalho está sendo realizado.
Mas voltemos a falar de minha
experiência durante essa semana. De início, a primeira constatação que eu faço
é que há dois fatores externos (aos alunos) que influenciam direta e
terminantemente o rendimento geral dos alunos. O primeiro é o meio em que eles
estão inseridos. Ao chegar às escolas, a realidade que vemos nas ruas, a
quantidade de pessoas sentadas às oito da manhã sem fazer nada, a limpeza das
proximidades, já indicam o que deveremos encontrar lá dentro. Parece exagero
falando assim, mas não é. Isso influencia, mas pode ser contornado.
O que é mais difícil de ser
contornado, em minha opinião, é o segundo fator. O rendimento dos alunos das
escolas está diretamente ligado ao nível de preparo dos Recursos Humanos, ou
seja, de todos os funcionários das escolas. Se você chega a uma escola e vê
diversas pessoas com a cara amarrada, fazendo nada, que olham você e fingem,
durante intermináveis minutos, que não o vêem para, só depois, vir arrastando
os pés saber, literalmente, “quem incomoda”, as chances de os alunos daquela
escola terem um ensino digno, para dizer o mínimo, também são mínimas.
Obviamente estou sendo simplista,
mas, em geral, os fatos não fogem muito dessa regra.
Mas o que vi, nos cinco dias de
aplicação de provas foi um paradoxo. Sai de muitas escolas animado. Escolas em
que se percebe o empenho de professores, funcionários e diretores em melhorar a
qualidade do ensino, em fazer daquele ambiente mais do que uma escola, mas um
centro de aprendizado. Não é possível dizer, do alto das sacadas dos
apartamentos burgueses, que a educação no estado está falida. Há muita gente
boa trabalhando duro para melhorar esse quadro.
Em lugares como esses encontrei
alunos aplicados, ensino rígido, aprendizado de fato e, sobretudo, espaço para
sonhar. Sim, a essas crianças ainda é dado o direito de sonhar com um futuro
digno. Raciocínio rápido, capacidade de criar relações, respeito ao professor,
ao mais velho e ao próximo.
No entanto, vi cenas
desanimadoras. Ouvi gritos (para não dizer berros) onde deveria haver palavras
duras de carinho, pois é assim que se ensina. E como para ser respeitado é
preciso respeitar, ouvi gritos de ambas as partes, pois a autoridade se
conquista e o medo não existe onde não há esperança.
Primeira fileira, segunda
carteira. Tamanho maior do que a média daquela sala. Mão levantada, olhar com
um desespero estranho. Chego à carteira e ouço a pergunta:
- “Professor, para responder essa
eu preciso ler esse texto todo aqui”.
Não posso dizer mais do que eu
disse: “sim, você precisa ler e depois responder as três perguntas”.
Quando vou virando para ir embora
escuto, baixinho, quase como uma confissão:
- “Mas eu não consigo ler...”.
Fazer o que? É para isso que eles estão fazendo aquela prova.
Gostaria de poder dizer que foi um fato
isolado. Mas estaria mentindo. Nos primeiros dias percebi que dois grupos
acabavam logo os blocos (de português e matemática, esqueci de dizer que essas
eram as disciplinas que caíam na prova). O grupo daquelas que resolvia
facilmente a prova e o grupo daqueles que não conseguiam sequer entender o que
se pedia nas questões.
Estabeleci um parâmetro para
analisar os resultados: os gráficos. Ler as palavras, muitos conseguiam, mas
saber ler é entender o sentido de um texto... ou entender o que um gráfico está
mostrando. E passei a observar algumas questões especificamente. Em uma delas
havia um gráfico de barras com a venda de dois produtos de uma loja durante
alguns meses. A pergunta era direta: em qual dos meses a produção era a mesma.
Bastava achar o mês em que o nível em das barras era o mesmo, ou que elas
“tinham o mesmo tamanho”.
Incrível como seis barras podiam
confundir tanto a cabecinha deles. Desesperador, para mim, ver o quanto a
incapacidade de raciocinar os levava, primeiro, ao desespero e depois à
desistência. Por que perder tempo tentando fazer, em duas horas, aquilo que
eles não conseguiram aprender em anos?
Podia contar diversas
experiências, quantas vezes fui chamado a uma carteira para ouvir a mesma
pergunta: “não estou entendendo essa”. A resposta era sempre a mesma: “Leia de
novo e tenta entender o que está pedindo”. Isso aconteceu em todos os tipos de
escola. Mas os resultados eram distintos. Em alguns casos eu ouvia um “agora eu
entendi” e em outros não ouvia mais nada... Mas o problema é o mesmo. As
crianças não estão lendo. Têm preguiça, falta de estímulo, falta de tempo,
incapacidade. Mas esse texto já está muito maior do que eu esperava. Até porque
nós também não temos lá tanta paciência para ficar lendo, lendo e lendo...
Mas, só para terminar gostaria de
contar um caso que não aconteceu comigo, mas com um amigo que aplicava prova ao
lado da minha sala. Ele serve não para, simplificadamente, justificar todas as
mazelas do ensino público, mas nos leva a uma reflexão de que a questão é bem
mais complexa do que se pensa e, para mudar a educação não bastam apenas
políticas de educação.
A sala está quieta, concentrada
na prova. A professora, sentada ao fundo, responde a um questionário que o
estado fez para conhecer um pouco mais dos profissionais, e para mantê-los
longe dos alunos e das provas durante a aplicação. Ela pede para sair durante
alguns minutos. A partir daí o cenário muda. Os alunos levantam, borrachas
passam voando, a prova muda de individual para em grupo. Tudo isso em frações
de segundo. O aplicador olha assustado e, sem saber o que fazer, pede a
presença da professora de volta.
Um aluno em especial chama a
atenção. Maior que o normal, um capuz na cabeça, um bigodinho denuncia que não
era para ele estar ali e o olhar de indiferença denuncia o atrevimento e a
falta de medo. Isso enquanto o aplicador está ali, mas não muda com a chegada
da professora. Quando ficam somente os três na sala, ela exige que o aluno peça
desculpas ao aplicador. O olhar do aluno não muda. O pedido de desculpas não
vem. A ordem dada de tirar o capuz da cabeça parece sequer ter sido ouvida. A
professora desiste. Manda o aluno sair da sala. Ele vencera, pode-se pensar.
A professora pede desculpas ao
aplicador e conta que se trata de um aluno problemático. “Quando ele era
pequeno o padrasto dele estuprou as duas irmãs na frente dele. Depois, a irmã
dele se afogou, ele tentou salvá-la, mas não conseguiu. Desde então ele ficou
assim. Ele fala para quem quiser ouvir que está só esperando o padrasto sair da
cadeia...”
Ouvi essa história na saída da
escola. As crianças estavam no intervalo. Falei a meu amigo para irmos devagar,
quem sabe não via o tal garoto, ele poderia me mostrar. Mas não precisou. Antes
mesmo de ele falar alguma coisa vi, no pátio, um aglomerado. No meio, um aluno,
que mais parecia brincar de domador de circo, girava uma cadeira nas mãos,
ameaçando os outros alunos. Talvez enxergasse neles o rosto de um covarde, por
quem aguarda. Tomara que nunca encontre.
Bom, acho que ultrapassei minhas
expectativas de linhas. Talvez não consiga mais ser sucinto com palavras. Ou
talvez essas histórias merecessem muito mais do que algumas páginas para serem
contadas. De resto, creio que há esperança para nosso futuro, mas para isso, há
muito trabalho a ser feito...
Hugo Nogueira Luz é jornalista
nogueiraluz@gmail.com
Parabéns pelo relato Hugo!!! Estas são as faces do ensino das escolas públicas do nosso país. Triste, mas há uma luz de esperança que devemos acreditar e buscar!!!
Abraços,Claudinho!!!
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