3 de dezembro de 2011

O paradoxo do ensino público no estado de São Paulo


Acabo de encerrar a maratona de, durante uma semana, aplicar a Prova Brasil em escolas públicas estaduais da região de Limeira. Tive a ‘sorte’ de atuar junto a alunos do 5̊ ano, também conhecido como 4ͣ série. Em cinco dias foram cinco escolas visitadas. A Prova Brasil faz parte do SAEB, o Sistema de Avaliação da Educação Básica, vinculado ao INEP, órgão do Ministério da Educação. Ao meu entender, o grande objetivo desse tipo de avaliação é, através do rendimento dos alunos, avaliar o ensino público no Brasil.

Depois de dez meses trabalhando diretamente com a educação em São Paulo tenho tido grandes surpresas com relação ao investimento nessa área. Mais que isso, tenho me surpreendido com as políticas educacionais desenvolvidas, sobretudo porque tenho encontrado gestão na educação de nosso estado. Objetivos, metas, trabalho e resultados. Está longe de ser perfeito, mas o trabalho está sendo realizado.

Mas voltemos a falar de minha experiência durante essa semana. De início, a primeira constatação que eu faço é que há dois fatores externos (aos alunos) que influenciam direta e terminantemente o rendimento geral dos alunos. O primeiro é o meio em que eles estão inseridos. Ao chegar às escolas, a realidade que vemos nas ruas, a quantidade de pessoas sentadas às oito da manhã sem fazer nada, a limpeza das proximidades, já indicam o que deveremos encontrar lá dentro. Parece exagero falando assim, mas não é. Isso influencia, mas pode ser contornado.

O que é mais difícil de ser contornado, em minha opinião, é o segundo fator. O rendimento dos alunos das escolas está diretamente ligado ao nível de preparo dos Recursos Humanos, ou seja, de todos os funcionários das escolas. Se você chega a uma escola e vê diversas pessoas com a cara amarrada, fazendo nada, que olham você e fingem, durante intermináveis minutos, que não o vêem para, só depois, vir arrastando os pés saber, literalmente, “quem incomoda”, as chances de os alunos daquela escola terem um ensino digno, para dizer o mínimo, também são mínimas.

Obviamente estou sendo simplista, mas, em geral, os fatos não fogem muito dessa regra.

Mas o que vi, nos cinco dias de aplicação de provas foi um paradoxo. Sai de muitas escolas animado. Escolas em que se percebe o empenho de professores, funcionários e diretores em melhorar a qualidade do ensino, em fazer daquele ambiente mais do que uma escola, mas um centro de aprendizado. Não é possível dizer, do alto das sacadas dos apartamentos burgueses, que a educação no estado está falida. Há muita gente boa trabalhando duro para melhorar esse quadro.

Em lugares como esses encontrei alunos aplicados, ensino rígido, aprendizado de fato e, sobretudo, espaço para sonhar. Sim, a essas crianças ainda é dado o direito de sonhar com um futuro digno. Raciocínio rápido, capacidade de criar relações, respeito ao professor, ao mais velho e ao próximo.

No entanto, vi cenas desanimadoras. Ouvi gritos (para não dizer berros) onde deveria haver palavras duras de carinho, pois é assim que se ensina. E como para ser respeitado é preciso respeitar, ouvi gritos de ambas as partes, pois a autoridade se conquista e o medo não existe onde não há esperança.

Primeira fileira, segunda carteira. Tamanho maior do que a média daquela sala. Mão levantada, olhar com um desespero estranho. Chego à carteira e ouço a pergunta:

- “Professor, para responder essa eu preciso ler esse texto todo aqui”.

Não posso dizer mais do que eu disse: “sim, você precisa ler e depois responder as três perguntas”.

Quando vou virando para ir embora escuto, baixinho, quase como uma confissão:

- “Mas eu não consigo ler...”. Fazer o que? É para isso que eles estão fazendo aquela prova.

 Gostaria de poder dizer que foi um fato isolado. Mas estaria mentindo. Nos primeiros dias percebi que dois grupos acabavam logo os blocos (de português e matemática, esqueci de dizer que essas eram as disciplinas que caíam na prova). O grupo daquelas que resolvia facilmente a prova e o grupo daqueles que não conseguiam sequer entender o que se pedia nas questões.

Estabeleci um parâmetro para analisar os resultados: os gráficos. Ler as palavras, muitos conseguiam, mas saber ler é entender o sentido de um texto... ou entender o que um gráfico está mostrando. E passei a observar algumas questões especificamente. Em uma delas havia um gráfico de barras com a venda de dois produtos de uma loja durante alguns meses. A pergunta era direta: em qual dos meses a produção era a mesma. Bastava achar o mês em que o nível em das barras era o mesmo, ou que elas “tinham o mesmo tamanho”.

Incrível como seis barras podiam confundir tanto a cabecinha deles. Desesperador, para mim, ver o quanto a incapacidade de raciocinar os levava, primeiro, ao desespero e depois à desistência. Por que perder tempo tentando fazer, em duas horas, aquilo que eles não conseguiram aprender em anos?  

Podia contar diversas experiências, quantas vezes fui chamado a uma carteira para ouvir a mesma pergunta: “não estou entendendo essa”. A resposta era sempre a mesma: “Leia de novo e tenta entender o que está pedindo”. Isso aconteceu em todos os tipos de escola. Mas os resultados eram distintos. Em alguns casos eu ouvia um “agora eu entendi” e em outros não ouvia mais nada... Mas o problema é o mesmo. As crianças não estão lendo. Têm preguiça, falta de estímulo, falta de tempo, incapacidade. Mas esse texto já está muito maior do que eu esperava. Até porque nós também não temos lá tanta paciência para ficar lendo, lendo e lendo...

Mas, só para terminar gostaria de contar um caso que não aconteceu comigo, mas com um amigo que aplicava prova ao lado da minha sala. Ele serve não para, simplificadamente, justificar todas as mazelas do ensino público, mas nos leva a uma reflexão de que a questão é bem mais complexa do que se pensa e, para mudar a educação não bastam apenas políticas de educação.

A sala está quieta, concentrada na prova. A professora, sentada ao fundo, responde a um questionário que o estado fez para conhecer um pouco mais dos profissionais, e para mantê-los longe dos alunos e das provas durante a aplicação. Ela pede para sair durante alguns minutos. A partir daí o cenário muda. Os alunos levantam, borrachas passam voando, a prova muda de individual para em grupo. Tudo isso em frações de segundo. O aplicador olha assustado e, sem saber o que fazer, pede a presença da professora de volta.

Um aluno em especial chama a atenção. Maior que o normal, um capuz na cabeça, um bigodinho denuncia que não era para ele estar ali e o olhar de indiferença denuncia o atrevimento e a falta de medo. Isso enquanto o aplicador está ali, mas não muda com a chegada da professora. Quando ficam somente os três na sala, ela exige que o aluno peça desculpas ao aplicador. O olhar do aluno não muda. O pedido de desculpas não vem. A ordem dada de tirar o capuz da cabeça parece sequer ter sido ouvida. A professora desiste. Manda o aluno sair da sala. Ele vencera, pode-se pensar.

A professora pede desculpas ao aplicador e conta que se trata de um aluno problemático. “Quando ele era pequeno o padrasto dele estuprou as duas irmãs na frente dele. Depois, a irmã dele se afogou, ele tentou salvá-la, mas não conseguiu. Desde então ele ficou assim. Ele fala para quem quiser ouvir que está só esperando o padrasto sair da cadeia...”

Ouvi essa história na saída da escola. As crianças estavam no intervalo. Falei a meu amigo para irmos devagar, quem sabe não via o tal garoto, ele poderia me mostrar. Mas não precisou. Antes mesmo de ele falar alguma coisa vi, no pátio, um aglomerado. No meio, um aluno, que mais parecia brincar de domador de circo, girava uma cadeira nas mãos, ameaçando os outros alunos. Talvez enxergasse neles o rosto de um covarde, por quem aguarda. Tomara que nunca encontre.

Bom, acho que ultrapassei minhas expectativas de linhas. Talvez não consiga mais ser sucinto com palavras. Ou talvez essas histórias merecessem muito mais do que algumas páginas para serem contadas. De resto, creio que há esperança para nosso futuro, mas para isso, há muito trabalho a ser feito...


Hugo Nogueira Luz é jornalista
nogueiraluz@gmail.com

1 comentários:

Claudio 14:42  

Parabéns pelo relato Hugo!!! Estas são as faces do ensino das escolas públicas do nosso país. Triste, mas há uma luz de esperança que devemos acreditar e buscar!!!
Abraços,Claudinho!!!

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